terça-feira, 4 de agosto de 2009

Bauhaus e suas influencias

JustificarDesde seus primeiros registros, o gótico nunca gerou tantas dúvidas e mal-entendidos quanto hoje. Chegamos ao ponto de professores de literatura inglesa discutirem se ainda há valor acadêmico no termo, enquanto jovens defendem a inviabilidade de qualquer tentativa de definição.

Parte da culpa é da imprensa dos anos 80, que abusou da alcunha inflando significados anteriores que, há muito tempo, já eram considerados complexos.
Por que o gótico tomou ares tão abrangentes de alguns anos para cá? Alguns podem achar exagero, mas creio que entender esta banda é entender o início de tudo...

Direta ou indiretamente, o Bauhaus é uma das bandas mais influentes do pós-punk inglês: sobre isso não há dúvida. Entretanto, é uma pena constatar que a maior parte de sua obra foi simplesmente deixada de lado... Em 83, pouco antes da separação oficial, as cenas iniciais do filme Fome de Viver foram sintomáticas. Elas traziam a performance singular do esguio Peter Murphy em cenas até hoje cultuadas - cenas que praticamente excluíram todo o resto da banda.

É realmente marcante a química entre Peter Murphy e Daniel Ash, mas há um lado menos explorado do Bauhaus que contém muito de sua essência. Pouco se fala do núcleo fundador da banda, a cozinha dos irmãos Kevin H. e David J. (bateria e baixo, respectivamente).

Eles já haviam tocado em duas bandas (The Submerged Teeth e The Craze), em 77 - pleno auge punk; Kevin mantinha o interesse por outros ritmos (como podemos comprovar pela levada "bossa-nova" de "Bela Lugosi's Dead") e David já esbanjava cultura (até hoje, ele lança bons álbuns de poesia recitada)... As duas bandas não vingaram, faltava algo. Isso os levou a procurar o que lhes faltava: alguém carismático. Acharam Daniel Ash...

Tocaram juntos por algum tempo, até que Daniel comentou sobre Peter Murphy, um "delinquente lindo" que estudava com ele e que era "a cara do David Bowie". Chamaram-no mesmo sabendo que Peter não tinha experiência com canto, apesar de dançar muito bem. Estava definida a formação... Faltava um nome. Foi proposto "1919 Bauhaus", que fundia o ano de fundação e o nome da mais notória escola alemã de arte moderna. Acabaram excluindo o prefixo e terminaram como apenas Bauhaus.

A grande sacada do Bauhaus foi sua releitura do punk, apesar da relevante influência glam de seu som (o que viria a ser chamado de pós-punk estava começando naquela época - 78/79 - quando Nick Cave, ainda no Birthday Party, era um semideus). Devido à sua rebeldia individualista, o punk apareceu como o mais "essencialmente romântico" de todos os movimentos musicais, pregando o do it yourself e a destruição da forma "séria" do rock progressivo. Mas, como toda vanguarda, foi efêmero pelo fato de se tornar uma forma em si. Apareciam bandas tocando punk-rock em todos os cantos e havia uma espécie de fórmula pairando no ar: "isso se faz com três acordes e atitude delinquente". O punk então tornou-se estética e inspirou uma certa "ideologia pré-fabricada" (semelhanças com o gótico?).

O que a banda fez foi criar seu próprio punk, fazendo música de vanguarda sem copiar o modelo das bandas punks contemporâneas à eles. Ao invés de seguirem a fórmula, foi no passado que eles foram buscar inspiração, fazendo uma espécie de colagem de outras vanguardas com propostas anti-conservadoras, mas de estéticas diversas. Podemos até rastrear algumas destas correntes, a partir de músicas específicas:

1.Surrealismo.

"Exquisite Corpse" – Composição fragmentária como os poemas de um Murilo Mendes, por exemplo. Inspirada numa brincadeira homônima que os surrealistas utilizavam para compor poemas sem coesão através da escrita de partes independendes que depois eram reunidas. Contém frases delirantes ("Now browning, sinking, dying / a thousands deaths"; "The Sky's Gone Out!"), roncos, tossidos, assobios, além de mudanças bruscas de ritmo.

2. Dadaísmo.

"Party of the First Part" - Uma música que os mostra "ensaiando" linhas de baixo enquanto assistem e comentam o filme "The Devil and Daniel Mouse" (na cena em que o Diabo encomenda a alma de uma cantora em busca de sucesso)...

3. Expressionismo.

"Of Lillies and Remains" – O relato "muito são" de alguém que percebe que acabou de morrer enquanto foge de uma pessoa que cai expelindo ectoplasma pela boca e orelhas. Para conseguir sua vida de volta, tenta escalar uma parede repleta de buracos (abstração absoluta!).

4. Horror gótico hollywoodiano.

"Bela Lugosi's Dead" – Pensada como uma brincadeira de "trava-língua", tornou-se o primeiro hino gótico com seu vampiro estilizado de acordo com o imaginário do horror americano da década de 30.

5. Decadentismo.

"The Three Shadows part II" – Seguindo a tradição de "espantar o burguês", esta, a segunda parte de uma trilogia (a parte mais melancólica), evoca reações à opressão do conservadorismo com imagens simbólicas (o Simbolismo não foi a melhor expressão do Decadentismo?) que remetem a assédios sexuais, ao complexo de édipo e à pedofilia/canibalismo infantil.

6. Teatro da Crueldade.

"Antonin Artaud" – Homenagem ao revolucionário teórico francês que rompeu com os surrealistas e aplicou conceitos vanguardistas no teatro e em sua filosofia diária. Ao lado de Nietzsche, é um dos pensadores mais viscerais do Ocidente. A letra emula sua luta contra a loucura, com declarações explícitas de admiração ("The old man's words, / White hot knives / Slicing through warm butter / The butter is the heart"). Aplicadas no palco, suas teorias influenciaram a escolha da banda por tons escuros ou neutros, emoldurando as músicas neste teatro de luz e sombra expressionista...


David J. : Se o primeiro single da banda não fosse justamente "Bela Lugosi's Dead", e sim - por exemplo - "Of Lillies and Remains", muito provavelmente algum crítico os rotularia como Expressionistas Pós-Modernos ou algo do tipo (rock expressionista, talvez)... E, tudo isso, graças à bagagem cultural daquela figura discreta que tocava baixo com inseparáveis óculos escuros, embrulhada em ternos de cores neutras.

Os críticos que consideraram o rock do Bauhaus um tanto gótico estavam certíssimos, mas a análise deveria ser revista já no primeiro álbum deles. In the Flat Field ampliou o leque da banda para muito além de "Bela Lugosi's Dead" e "Boys"

É claro que tudo poderia soar "intelectualóide" demais, não fosse o carisma de Peter e Daniel... Eles foram o corpo. Os irmãos, por sua vez, foram a alma da banda... Essa diferença de temperamento pode ser muito claramente percebida nos relatos que a banda fez da "Ressurrection Tour" (que os reuniu e comemorou seu vigésimo aniversário). Peter Murphy escreve com um certo charme; Daniel Ash é uma verdadeira "perua", exibindo motocicletas novas e roupas emplumadas; Kevin é discreto e lacônico e, finalmente, David J. escreve verdadeiras odisséias relatando cada show e descrevendo cada país visitado de forma fascinante e um tanto pitoresca ("Esse garoto vive no mundo da Lua", Peter Murphy escreveria em seus diários)...

Em 83, quando o gótico, como o punk, tornou-se um modismo e a imprensa apontava o Bauhaus como responsável por seu início, eles simplesmente dissolvem a banda (Peter Murphy se lembra com amargura dos dias em que sentia que a nescessidade de agradar aquele público passou a interferir no processo de criação da banda).

Apareceram então vários projetos... Love & Rockets, Dali's Car, Tones on Tail, Sinister Ducks, Daniel Ash (solo), Peter Murphy (solo), David J. (solo)... todos, quase sempre, fazendo questão de se distanciar dos clichês góticos. O Love and Rockets tirava fotos com todos de branco, diante de pôsteres do Woody Allen e coisas do gênero...

Hoje, alguns vêem a banda como mais um clone do David Bowie (em resposta à este tipo de crítica, eles gravaram "Ziggy Stardust" fazendo-a soar o mais parecida possível com a original), outros a vêem como a banda gótica original; mas, no fundo, eles são muito mais que isso. Foram góticos em alguns momentos, é claro, mas foram muitas outras coisas no ínterim. Diferentes das bandas que desde o início planejam ser góticas, geralmente trazendo péssima reputação ao gênero, eles o foram autenticamente... Há uma intersecção do Bauhaus com o Gótico, mas o Bauhaus não está contido nele.

A partir do momento em que tantas referências foram agrupadas neste único rótulo, ficou a sensação de que "se é assim, sempre cabe mais uma". Então, cada uma das características das primeiras bandas góticas se somaram às antigas referências do termo como elementos legítimos (discutível, não?).

Sem querer, a complexidade artística do Bauhaus - com suas referências ao passado da dança (Nijinsky), do teatro (Artaud ) e da literatura (vanguardas do entre-guerras) - acabaram por bagunçar ainda mais as peças deste quebra-cabeça que é a tradição gótica.Se bem que, desta forma, veladas por este "desafio duplo" (desvendar os rótulos sob o rótulo), as coisas acabam muito mais interessantes, não é mesmo?

Por Cid Vale Ferreira


Video: Bauhaus - Hollow Hills

Ancient earthwork, fort and barrow
discreetly hide their secret abodes
the most fearful hide deep inside
and venture not there opon yuletide

for invasion of their hollow hills
that music hold, and oberon fill
is surely recommended not
for fear of death, in fear of rot

hollow hills
hollow hills
hollow hills
hollow hills

baleful sunds and wild voices ignored
ill luck, disaster, the one reward
violated sanctity of supermen's hills
so sad, love lies there still, so sad- so sad
hollow hills, hollow hills
witches too, and goblin too and speckled sills
lament, repent, oh mortal you
so sad, so sade (fade out)

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