
Em 1920, um filme realizado na instável República de Weimar horrorizava o mundo. Com um enredo de pesadelo e os cenários mais bizarros criados até então, O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari), dirigido por Robert Wiene, provocou discussões apaixonadas a respeito das possibilidades artísticas e expressivas do cinema: ao relacionar-se com um dos movimentos de arte moderna mais importantes da época – o Expressionismo – indicou novas relações entre filme e artes gráficas, entre ator e representação, entre imagem e narrativa. O seu impacto (e de outros filmes igualmente sombrios e enigmáticos provindos da República de Weimar nos anos seguintes) levou à constituição de uma escola cinematográfica que ficaria conhecida como "Expressionista", cuja definição ainda é motivo de controvérsias acadêmicas.
Influenciado pelas idéias de Sigmund Freud, e bem ao gosto de um romantismo tardio, o filme O Gabinete do Dr. Caligari contava a história de um rapaz ameaçado por uma monstruosa figura masculina e de uma mulher cuja sexualidade só podia ser compreendida por uma criatura da noite. Seu enredo é famoso: o misterioso Dr.Caligari (Werner Krauss) chega à pequena cidade de Holstenwall com um espetáculo sinistro em que seu assistente, o sonâmbulo Cesare (Conrad Veidt), adivinha o futuro das pessoas. Logo depois da chegada da dupla sinistra, uma série de crimes praticados na cidade fazem com que as suspeitas se voltem para o sonâmbulo, flagrado seqüestrando uma moça, Jane (Lil Dagover), namorada do jovem Francis (Friederich Feher). Obcecado com o assunto, Francis descobre que o mandante dos crimes é o próprio Dr. Caligari, que controla os atos de Cesare por meio da hipnose. A este roteiro escrito pelos jovens escritores Hans Janowitz (1890-1954) e Carl Mayer (1894-1944), o diretor Robert Wiene (1880-1938) adicionou uma história-moldura em que Francis é um louco internado em um sanatório dirigido pelo próprio Dr. Caligari, médico benevolente que, ao ouvir sua história, descobre "como curá-lo".
Baseado nas experiências de Mayer com psiquiatras durante a Guerra, e no testemunho de Janowitz a respeito do assassinato de uma moça no parque Holstenwall, em Hamburgo, o roteiro pretendia ser uma crítica do absurdo e da violência de qualquer autoridade social. Mas a criação da atmosfera de pesadelo só foi possível porque a cenografia produzida em painéis pintados ao estilo expressionista conseguiu evocar a fisionomia de um mundo tortuoso e imprevisível. Ao evitar as linhas retas e as formas realistas, e ao reforçar as curvas abruptas e a pouca profundidade, esse cenário provocava sentimentos de inquietação e desconforto adequados à história que estava sendo contada.
A ligação inegável de O Gabinete do Dr. Caligari com o Expressionismo é o principal motivo de sua duradoura fama como exemplo de um cinema de vanguarda comprometido com os princípios da Arte. Mas, se observarmos sua realização sob o ponto de vista do contexto histórico, é preciso admitir que essa ligação não foi motivada apenas pela sensibilidade estética de seus criadores. Afinal, se, por um lado, o filme trazia uma história de loucura e morte vivida por personagens desligados da realidade, e cujos sentimentos apareciam traduzidos em um drama plástico repleto de simbologias macabras – com isso, ligando-se às experiências expressionistas no teatro e na pintura – Caligari se relacionava, igualmente, com os filmes fantásticos realizados no país antes da Guerra e com o popularíssimo gênero de filmes de detetives, o que indica a preocupação comercial de seus realizadores. Além disso, é preciso lembrar que, em 1919, o Expressionismo estava na moda em Berlim: obras de artistas expressionistas se destacavam em todas as galerias de arte, gravuras de seus principais artistas decoravam cartazes publicitários, inúmeras peças expressionistas estavam sendo encenadas na cidade. Assim, é preciso admitir-se que o elemento "arte" em Caligari pode ter sido calculado como atração-extra – ainda que incerta – para as bilheterias.
Mas a fama do filme não se deveu apenas a seus aspectos esteticamente revolucionários, à sua ligação com a tradição romântica alemã ou ao seu bem-sucedido lance de marketing artístico. Muitas das discussões em torno de Caligari, até hoje, envolvem as versões contraditórias acerca de sua concepção e execução.
A origem
O poeta Janowitz e o dramaturgo Mayer começaram a trabalhar em seu roteiro no inverno de 1918-19, durante as últimas semanas da revolução alemã. Segundo Janowitz relataria anos depois, os aportes específicos para a concepção da obra foram quatro: primeiro, a atmosfera de mistério inspirada pela cidade de Praga, onde Janowitz nascera; segundo, o assassinato de uma moça testemunhado pelo próprio Janowitz em Hamburgo; terceiro, a desconfiança de ambos diante do poder autoritário do Estado e do serviço militar; e quarto, um espetáculo de sonambulismo a que os dois haviam assistido numa feira de variedades em Berlim.
Com o roteiro pronto, a dupla teria procurado Erich Pommer, dono da produtora Decla Biscop. Segundo Pommer alegaria mais tarde, o roteiro o atraíra pela intrigante história de mistério, mas sobretudo pelo fato de poder ser inteiramente filmado em estúdio, e com cenários baratos. Para realizar a empreitada, a Decla teria indicado Fritz Lang, então um diretor promissor. Mas Lang estava envolvido nas filmagens do seriado de aventura As Aranhas e, com isso, o experiente Robert Wiene (que até então já dirigira mais de 30 fitas) acabou ficando com o trabalho.
Durante quase cinqüenta anos, a versão aceita da história da realização de Caligari foi esta, publicada no livro de Siegfried Kracauer De Caligari a Hitler: Uma História Piscológica do Cinema Alemão (1947), baseada no relato de Hans Janowitz. Segundo ele, o crédito pela concepção do filme deveria ser dado inteiramente aos seus dois escritores, que teriam entregado a Pommer e Wiene o produto pronto para ser executado. Na época desse relato, supunha-se que nenhuma cópia do roteiro havia sobrevivido.
Nos anos 70, porém, quando a Stiftung Deutsche Kinamathek conseguiu ter acesso a uma cópia do roteiro original, foi possível desmitificar uma série de lendas a respeito do filme, principalmente no que se refere à participação de Wiene: em nenhuma parte, por exemplo, o roteiro prenuncia o visual singular que o eternizaria. Tal recurso, segundo se acredita hoje, teria sido idéia do diretor e dos seus cenaristas, os pintores Herrman Warm (1889-1976), Walter Reinman (1883-1936) e Walter Röhrig (1893-1945), ligados ao grupo Der Sturm. Pommer, empolgado com o baixo custo da cenografia e com o potencial "artístico" do projeto, teria aceitado a idéia na hora.
Mas havia um problema: o cenário de Janowitz-Mayer estava ambientado no mundo moderno, com telefones, telegramas e luz elétrica. Wiene e seus assistentes podem ter previsto problemas na compatibilização dessa tecnologia com o desenho fantástico, e acabaram por excluí-la, dando ao filme um aspecto de atemporalidade que só reforça sua relação com as propostas da arte expressionista.
A polêmica que se tornaria famosa e que reforçaria o caráter mítico de Caligari não foi causada, porém, pela eliminação desses itens do roteiro. O motivo da discórdia entre os roteiristas e o diretor foi a "história-moldura" adicionada à narrativa – idéia que Lang reivindicou para si – mas que foi atribuída, na época, a Wiene. Para os roteiristas, a estratégia de apresentar Francis como um indivíduo mentalmente incapaz invertia a idéia central do roteiro, que era a de questionar a obediência cega à autoridade.
A polêmica
Em 1941, Janowitz afirmaria:
Nossa história simbólica foi explicada como sendo um conto narrado por uma pessoa mentalmente desarranjada, insultando, assim, o nosso drama – a tragédia de um homem enlouquecido pelo mau uso de seus poderes mentais.
No seu famoso julgamento a respeito do assunto, Siegfried Kracauer acrescentaria questões políticas relativas ao autoritarismo, que o levaram a apresentar Caligari como um prenúncio da era-Hitler:
...enquanto a história original expunha a loucura inerente à autoridade, o Caligari de Wiene glorificava a autoridade e condenava o antagonista à loucura.
É verdade que os roteiristas reagiram imediata e decididamente à alteração da história, retirando-se da sessão de estréia sem nem mesmo ouvir os aplausos do público – o que fez com que Wiene e o produtor Erich Pommer ficassem conhecidos como os indivíduos que desvirtuaram as intenções revolucionárias do filme.
Ocorre que, como revela David Robinson em O Gabinete do Dr. Caligari (1999), o roteiro original previa, sim, uma estrutura que emoldurava os acontecimentos do filme, mas esta era bem mais simples: tratava-se do relato de Francis para alguns amigos, anos depois de ter descoberto a verdadeira identidade de um certo Dr. Caligari que chegara à sua cidade natal. Como conclui o autor, a estratégia de Wiene pode ter sido simplesmente a de dar um tom mais dramático e perturbador à história narrada pelo protagonista.
Na época da estréia, o assunto da história-moldura não foi tratado com grande importância pela crítica. Desde seu lançamento, Caligari teve uma aceitação quase unânime por parte do público e dos críticos da Alemanha, do resto da Europa e dos Estados Unidos. E tanto a interpretação quanto a importância dada à história-moldura foram bastante variadas: alguns críticos a acharam edificante, outros a consideraram simplesmente coerente com a ambientação expressionista. Mesmo Kracauer observa que o cenário deformado não se modifica com a elucidação da loucura de Francis, o que indica que o mundo fictício do filme não se propõe a simplificar demais o tema da loucura. Assim, parece limitante reduzir este filme (e sua moldura) a um efeito alegórico específico. Como alega Thomas Elsaesser em The Weimar Cinema and After (2002), trata-se de uma metáfora que mantém sua ambivalência, e cuja correlação não é apenas o irracionalismo, mais também o ceticismo e a afirmação de uma dúvida radical.
Além disso, o espectador moderno pode prontamente interpretar o final de Caligari de um ponto de vista muito diferente do de Janowitz e Kracauer: e se Francis estiver dizendo a verdade? E se ele tiver sido internado em mais alguma artimanha maligna do terrível doutor? Como observa David Robinson, tal leitura contém um horror digno de Kafka. Nesse caso, ponto para Robert Wiene.
Repercussão
Ainda que as interpretações do filme tenham sido muito variadas, ninguém questionou a sua importância no contexto do cinema mundial. Os críticos norte-americanos e europeus foram unânimes na avaliação de seus traços mais importantes: a construção de uma densa atmosfera visual, a virtuosidade no desenvolvimento da ação através da iluminação apropriada e a grande mobilidade da câmera. Além destas, outras características presentes em O Gabinete do Dr. Caligari que depois se encontraram pulverizadas em uma série de filmes alemães foram a presença de personagens sinistros, os conflitos em relação à autoridade, a recorrência das imagens de horror e, sobretudo, o diálogo com as artes e a cultura do período.
Caligari inspirou uma cinematografia inovadora estética e tecnicamente, em que se destacaram, entre outros, os filmes O Golem (Der Golem, 1920), de Paul Wegener; Nosferatu – Uma Sinfonia do Horror (Nosferatu - Eine Symphonie des Grauens, 1922) e Fantasma (Phantom, 1922), de Friederich William Murnau; A Morte Cansada (Der Müde Tod, 1921) e Dr. Mabuse – O Jogador (Dr. Mabuse – Der Spieler, 1922), de Fritz Lang, Genuine (1921) e Raskolnikoff (1922), de Robert Wiene; Da Aurora à Meia-Noite (Von Morgens bis Mitternachts, 1923), de Karl Heinz Martin; Sombras (Schatten, 1923), de Arthur Robinson; Figuras de Cera (Das Wachsfigurenkabinett, 1924), de Paul Leni.
Se nenhum filme posterior se comprometeria tão cabalmente com o caráter formal do estilo, a marca de Caligari persistiria na expressividade dos cenários, no tratamento mágico da luz e na morbidez dos temas – características que ganharam a qualificação genérica de "expressionistas", e que começariam a entrar em declínio por volta de 1924.
por
Laura Cánepa
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