
Intrinsecamente ligada à figura, voz e escrita de Ian Curtis, a Joy Division foi uma das bandas que abriu a porta à década de 80 e uma das mais marcantes forças criativas da sua geração. Formada na ressaca da revolução punk, avessa à luminosidade festiva da new wave que se lhe seguiu, a Joy Division foi a primeira banda que conseguiu captar, não a raiva e energia, mas antes a ambiência e sentido de identidade do punk e projectá-los num espaço diferente que abriu alas ao desenho de uma atitude melancólica que dominaria a cena pop/rock alternativa na primeira metade de 80. Apesar das manifestações primeiras de uma certa desordem formal característica do punk, a depuração de ideias e linhas, o aflorar de um ideário urbano, tortuoso e solitário em tempestades interiores, e a posterior entrada em cena de sintetizadores fizeram da Joy Division um dos mais entusiasmantes laboratórios de reinvenção pop que a Inglaterra conheceu na passagem de 70 para 80. Em vida de Ian Curtis, tinham decidido que a saída de qualquer membro da banda decretaria o seu fim. A sua morte, em 1980, fechou antes do previsto o tempo da Joy Division. Das suas cinzas nasceriam os New Order. Mas essa é outra história...
Ian Curtis nasce em Macclesfield, arrabalde de Manchester, a 15 de Julho de 1956. A música é desde cedo a sua grande paixão, e o desejo de fazer parte de uma banda teve primeira materialização ainda nos dias de escola, entre amigos. Descobre Bowie (tinha um autógrafo seu e outro de Mick Ronson) e os Velvet Underground, Iggy Pop e os MC5. A sua primeira canção de referência é a versão de Bowie para um clássico de Brel, My Death (prenunciador? Não... puro exagero de mitologia pop). Descobre James Dean quando vê Fúria de Viver. Atraíu-o o seu sentido de rebelião. E a sua morte precoce. Venera o romantismo obsessivo e mágico de Rock'n'Roll Suicide de Bowie, admira Jim Morrison, morto no auge da criatividade.
Ian não tem dinheiro para comprar os álbuns que quer ouvir, e por vezes rouba-os, escondendo-os debaixo do casaco. Ainda adolescente começa a materializar um sentido de rebeldia através de incursões em bares de bebidas alcoólicas sem licença e em primeiras ingestões de químicos, na forma de comprimidos, cheirando cola, fumando. Alguns dos comprimidos ingeridos são roubados a pensionistas que ele e amigos visitam em serviços sociais. Numa ocasião a aventura termina num hospital, com ordem de lavagem ao estômago. É nestes dias de vadiagem e conduta rebelde que se aproxima de Deborah, jovem suburbana que o idolatra e com ele se casa em 1975.
Ian tem o seu primeiro emprego a sério numa loja de discos, a Rare Records, no centro de Manchester. Nunca tinha estado tão próximo do mundo da música, e para ganhar o lugar na loja estuda com entusiasmo velhas edições de jornais e revistas. É aceite e colocado na secção pop, na cave.

Depois de casados, Ian e Deborah mudam-se para uma casa própria em Oldham. No novo bairro são como alienígenas, não têm amigos nas redondezas. Afável, conversador, Ian abre a porta a toda a gente. Um dia, o candidato liberal à autarquia local bate à porta. Vende o seu discurso... Reaparece no dia da eleição para transportar, de carro, Ian e Deborah à mesa de voto. Mas, como sempre, Ian vota nos conservadores. E convence Deborah a fazer o mesmo, não fosse um voto em contrário anular o seu!
A rotina do casamento adensa o sentido de frustração em Ian Curtis por não ter nenhuma ligação e envolvimento na cena musical. Reza a mitologia que os primeiros passos para a aventura que meses depois se veio a chamar Joy Division são dados depois do marcante concerto dos Sex Pistols no Lesser Free Trade Hall de Manchester. Bernard Sumner e Peter Hook, respectivamente guitarrista e baixista, estão presentes. Deborah, no seu livro, conta que também ela e Ian lá estiveram... Mas em mais nenhum relato se fala da presença do futuro vocalista da Joy Division na sala (enfim, mitologias). O certo é que, semanas antes, Ian Curtis havia publicado um anúncio na imprensa musical no qual, assinando como Rusty, propunha a formação de uma banda. Obtém uma resposta, a de um guitarrista chamado Ian Gray. Juntos começaram a trabalhar e a circular na noite de Manchester, até que encontaram Sumner e Hook. A intensidade da relação musical com os novos amigos condu-los inevitavelmente no sentido da concretização do sonho de Ian: ter uma banda. Nesses dias, o casal Curtis muda-se para nova casa, em Macclesfield, na qual uma sala é guardada para uma nova função: a escrita e composição.
Ian Curtis, Bernard Sumner, Peter Hook e um primeiro baterista, Tony Tabak, apresentaram-se pela primeira vez em público a 29 de Maio de 1977 no Electric Circus como Warsaw, nome directamente inspirado no instrumental Warsawa, do álbum Low de David Bowie. A crítica no Sounds é desmotivadora. Mas Paul Morley, no NME, afirma que "existe uma faísca elusiva da dissemelhança nas bandas mais recentes que indica que têm ainda muito para mostrar. Gosto deles e irei gostar ainda mais daqui a seis meses". Paul Morley, descoberto numa fanzine e contratado pelo NME para retratar o que parecia uma invulgar agitação na cena musical de Manchester seria o "padrinho" da futura Joy Division na primeira liga da imprensa musical inglesa, um dos muitos parceiros de uma aventura colectiva que iria marcar a história da música. Desses primeiros tempos data ainda o contacto com Martin Hanett, que antes mesmo de surgir em estúdio como produtor, surge em cena como promotor de eventos, alguns dos quais com os iniciados Warsaw.
As canções dos Warsaw (que tinham encontrado novo baterista temporário em Steve Bothersdale) são ainda meros esboços de intenções, e as letras de Ian Curts primeiras manifestações de uma demanda pessoal. A energia da banda e a sua entrega compensam contudo as evidentes imperfeições. Um anúncio numa loja de música leva-os ao encontro com Steve Morris e este assume de vez o lugar de baterista. Ian trabalha, agora, como assistente social num centro de reintegração de deficientes perto de casa: Sumner trabalha em publicidade... Tentam uma primeira aparição televisiva na local Granada Television. E vêem-se brindados pelo entusiasmo da Virgin, que os grava ao vivo para uma compilação de talentos locais. Uma outra primeira gravação de quatro temas em nome próprio (com capa de Bernard com referências à imagética nazi e impressão a cargo de Steve) ocupa-os logo depois. O EP, de título An Ideal For Living assinala, em Janeiro de 1978, a mudança de nome de Warsaw para Joy Division.
Para evitar confusões com a banda punk Warsaw Pakt, os Warsaw passam a chamar-se Joy Division a partir de Janeiro de 1978. O nome, inspirado na ala dos campos de concentração nazis nos quais eram mantidas as prostitutas de serviço aos oficiais alemães, causa inevitável polémica. A mudança de nome, curiosamente, conduz também a mudanças formais na composição da banda. O punk era agora apenas um eco aceite como herança, as melodias mais cuidadas, as letras mais expressivas. A banda ainda toca mal, problema secundário. A crescente popularidade local dos Warsaw transferiu-se para a nova Joy Divsion, em concertos já com evidente legião de fãs. Por esta altura, através do investimento de alguns amigos e entusiastas locais (entre os quais profissionais do escritório local da RCA que Ian visitava regularmente), o grupo junta-se nos Greenwood Studios para gravar aquele que poderia ser o seu primeiro álbum (mas não foi). Mas as gravações desapontam o grupo. E acabam na gaveta (editadas dez anos mais tarde numa famosa bootleg). Uma noite, pouco depois, no Rafters (em Manchester), escreve-se história a tinta permanente. Tony Wilson, jornalista da Granada TV e apresentador do programa musical So It Goes (fundamental montra da revolução punk), ao descer as escadas do clube, é confrontado com um vómito irado de palavrões e insultos do habitualmente pacato Ian Curtis, que o critica por nunca ter levado a banda ao seu programa. Diplomata, Wilson responde que a Joy Division era a sua próxima escolha. Satisfaz Ian, tranquilizado pelo efeito de missão cumprida. E a verdade é que, dias depois, tocam Shadowplay frente às câmaras.
Apesar de possuído por esse sonho chamado Joy Division, e por dedicar cada vez mais tempo a grandes conversas sobre livros, filosofias e ideias bizarras com Bernard Sumner, Ian ainda vive com entusiasmo a vida familiar. Deborah engravida e nove meses depois entra em cena a pequena Nathalie. Mas aquele 1978 é sobretudo um tempo de agitação criativa para Ian Curtis e banda. Assinam um acordo de management com Rob Gretton. Gravam um tema para o sampler de estreia da editora Factory de Tony Wilson, e acabam por descobrir casa editorial para sempre. No fim do ano, contudo, Ian tem o seu primeiro ataque epiléptico registado. Teimoso, só comparece a uma consulta de especialidade em finais de Janeiro de 1979, duas semanas depois de surgir pela primeira vez na capa do NME fumando
A personalidade maníaca de Ian não é mais uma novidade para os amigos e colegas, que já lhe conhecem a volatilidade temperamental e tendência depressiva. A eplilepsia contudo é um factor novo, e começa a atormentar os concertos. Ian era já conhecido por assumir em palco uma dança frenética, espasmódica, como que estilizando as convulsões características da doença. Porém, ao longo dos largos meses seguintes, os ataques deixam de ocorrer apenas depois de terminados os concertos, para se manifestarem ainda em palco. Mas, por enquanto, sem consequências trágicas. Medicado, Ian continua.A música da Joy Divison evolui sombria, já evidentemente caracterizada pela presença possante do baixo de Peter Hook. As letras, quadros de desespero emocional e ansiedade urbana pós-industrial, vincam essa negritude depressiva. Era já a expressão superficial da melancolia natural em Ian Curtis, mas colegas e muitos admiradores só descodificaram os sentidos mais profundos das palavras depois da sua morte.

A banda actua intensamente depois da gravação de Unknown Pleasures e da edição do single Transmission, e os ataques de epilepsia multiplicam-se. A banda é agora quase um emprego full time, mas ainda incapaz de gerar salários expressivos. Ian faz de tudo para ganhar dinheiro extra. Limpa a sala de ensaios, cola folhas de lixa na capa do álbum de estreia dos Durutti Column. Os concertos, mesmo assim, surgem com agenda cada vez mais intensa. Os ataques crescem proporcionalmente, assim como aumentam as dificuldades de comunicação entre Ian e quem o rodeia. Em Agosto, ao assumir o lugar de banda de suporte numa digressão dos Buzzcocks, a Joy Division torna-se em pleno uma banda profissional, e todos abandonam os seus empregos não musicais. Em grupo, fora do palco, Ian começa a desenvolver uma atitude de alheamento aos fardos do dia-a-dia. Não carrega instrumentos, furta-se às obrigações não performativas. Bernard acompanha-o. Hook e Morris toleram...
A 16 de Outubro de 1979, numa pausa na digressão dos Buzzcocks, a Joy Division toca em Bruxelas, no Plan K. É aí que se pensa que Ian terá conhecido a fã Annick Honoré que rapidamente se torna a sua amante e sombra omnipresente (para descontentamento dos restantes membros da banda). Quando de regresso a casa Ian está cada vez mais distante, ausente. Em Janeiro de 1980 o grupo parte para uma exigente digressão europeia. Apesar da política de Greton que pede o afastamento de mulheres e namoradas, Ian leva Annick consigo. Ataques ocasionais ensombram a digressão. Nesses momentos, Annick afasta-se. Ian sente a rejeição e experimenta o frio da solidão. Publicamente, contudo, a banda vive momentos de glória. As canções são cada vez melhores, a voz de Ian mais encorpada e expressiva. As letras mais intensas.
Em Março de 1980 o grupo regressa a estúdio para gravar um segundo álbum. Hannett está novamente na cadeira de produção, e volta a interferir na condução da atmosfera dominante. Ian está inspirado, entregue à criação. Mas a sua escrita revela-se mais gélida que nunca, implacável contra si, contra o futuro. Uma premonição? Se o álbum anterior havia definido um rumo, este novo explode em todas as direcções, numa erupção espantosa de criatividade bem estruturada. Os teclados afloram com maior evidência, acrescentando ferramentas dramáticas ao arranjo das melhores canções da obra da banda. O vazio explorado na lírica é aqui oposto evidente da massa sonora e grandiosidade formal.
Um mês depois de gravado Closer, Ian Curtis toma uma overdose da medicação contra a epilepsia. É levado para o hospital, onde lhe é lavado o estômago. Ian é visto por um psiquiatra nessa noite, que conclui contudo que o paciente não é potencial suicida! Mas Ian chegou mesmo a deixar uma nota de suicídio à mulher, que Deborah não divulga aos amigos e familiares. No seu livro conta que se sentiu marginalizada pelo marido e banda, e que desde UnknownPleasures não conhecia as canções nem lia as letras. Não conhecia a nova realidade da natureza profunda da alma de Ian... Aconselham-no a uma pausa, e por dias deveria ficar numa casa de Tony Wilson em pleno campo. Mas no dia seguinte levam-no para o Deby Hall, em Bury, onde chegam a discutir se dão ou não concerto, tal é a debilidade do vocalista. Ian canta dois temas. E os fãs, desencantados, revoltam-se e quase destroem a sala. Ian segue para casa de Tony. Este e mulher desconhecem, todavia, a verdadeira dimensão da sua depressão, agravada certamente pela progressiva degradação da vida familiar (claramente retratada no single Love Will Tear Us Apart que então acabara de gravar), a precaridade da relação extra-marital, consequência clínica potenciada pela epilepsia, e um descontentamento para com a indústria musical. Este último, confessa-o a Deborah quando consigo vai a uma consulta de psiquiatria, a caminho da qual lhe terá dito que se havia realizado com as edições de Transmission e UnknownPleasures e que tanto Closer como LoveWillTear Us Apart não faziam já parte das suas aspirações. Segundo Deborah, Ian desejava abandonar a banda. Terá dito o mesmo a Stephen Morris, mas este julgou que o vocalista se queria mudar para outro lugar. Decades (de Closer) já havia levantado um debate interior sobre a futilidade da vida numa banda (e da vida em geral)...
Com o divórcio entre as preocupações imediatas, Deborah vê a agenda de concertos da banda conhecer nova erupção entre Abril e Maio, mês no qual o grupo deveria partir em digressão para a América. Ian vive então na casa de Tony Wilson, depois está algum tempo com Bernard e mais tarde regressa a casa dos pais. A 2 de Maio, em Birmingham, a Joy Division dá o seu último concerto. O passo seguinte era americano, numa viagem preparada para assegurar conforto e cuidados ao vocalista. O velho amigo Terry Mason seria o responsável pelo seu bem-estar, pela medicação, pela tranquilidade. Loucuras e prazeres típicos de bandas em digressão estão vetados. Uma visita ao especialista de epilepsia coloca-o, a 6 de Maio, frente a um médico novo. Ian dá-lhe a ideia de um homem que quer recuperar e começar vida nova... Depois da consulta oferece a Terry alguns dos seus discos, entre os quais algumas raridades. Indícios para um fim em vista?

O corpo de Ian é velado na Chapell of Rest, onde Tony agenda cautelosamente a visita de Annick, para evitar mais dramas. Tony Wilson também convida Paul Morley a comparacer, mas este fica à porta e recua. Wilson convidara-o para escrever "o" livro, mas Morley recusa. Ian Curtis é cremado a 23 de Maio de 1980. Na lápide Deborah inscreve: "Love Will Tear Us Apart". Love Will Tear Us Apart foi editado em Junho, e deu à Joy Divison a sua primeira entrada no Top 20. Closer, o álbum, também teve edição póstuma e subiu ao número seis da tabela de vendas, colhendo igualmente críticas de entusiasmo geral. Seis meses depois da morte de Ian, a banda reunia-se em estúdio para gravar um novo single. Bernard Sumner apresentava-se agora como vocalista. Gillian Gilbert, mulher de Stephen, entrava como teclista. Juntos gravaram Ceremony e o fúnebre (premonitório?) In A Lonely Place cujas maquetes haviam sido registadas com Ian Curtis, duas semanas antes do seu suicídio. As faixas eram parte de um novo single, apresentado como... New Order. É particularmente arrepiante a gravação de In A Lonely Place, canção na qual um morto, enforcado, é carpido por alguém que observa a sua lápide. Terá Ian Curtis escrito sobre a sua própria morte numa bizarra passagem de testemunho? Coincidência? Ou pura mitologia rock'n'roll?
Nota:

O texto foi plagiado
descaradamente do site:
sound + vision
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