Frankenstein, o grande romance de Mary Shelley, criou uma das criaturas mais interessantes do imaginário mundial. Aos 19 anos, a autora criou um monstro provido de conflitos existenciais em uma leitura envolvente e cheia de questionamentos sobre a vida, a ciência e os desprendimentos dos fatos advindos da manipulação do desconhecido.
Porém, o livro é muito mais do que apenas uma história sobre um cientista que cria uma criatura que se torna um monstro. Além da criatura, velha conhecida de dezenas de filmes e peças de teatro, temos perguntas que se remetem a libertação de uma maldição e uma dádiva.
O subtítulo do livro leva-nos à lenda de Prometeu, que, mesmo trazendo o maior benefício a humanidade, o fogo, acabou por libertar todos os males contidos na Caixa de Pandora. Cercado por esta imagem mítica, o enredo se desenvolve trazendo outros diversos questionamentos sobre o ser e o não ser, sobre a morte e sobre as responsabilidades das paixões no decorrer da nossa vida.
Vamos analisar ponto por ponto alguns dos tantos aspectos da estória sobre Victor Frankenstein e sua criatura.
É fato mais que sabido que toda criatura vivente tem um fim em comum que é a morte. Todos seremos abatidos pelo mesmo mal e iremos encontrar os mesmos efeitos, porém, a exploração dessa fatalidade é um alvo muito explorado pela arte e dialoga intimamente com várias obras da literatura universal.
O medo e, por conseqüência direta deste, a atração, causados pela figura da morte, levou Mary Shelley, Lorde Byron, Baudelaire, Edgar Allan Poe, Álvarez de Azevedo, Augusto dos Anjos e tantos outros escritores a flertar com temas que remetem às figuras de dor e perda.
O ser humano gosta de se sentir próximo, mesmo que seja pelas idéias, das sensações trazidas pelo fim da vida. Dor, incômodo, medo, inquietação, curiosidade e tristeza são algumas das sensações geradas por qualquer obra literária que use como temática a morbidez ou o terror.
Bater de frente com o que nos causa receio é o que leva o ser humano a passar por suas barreiras. Mary Shelley ilustra isso de uma forma bem resumida e verídica quando descreve, logo no início de sua narrativa (Capítulo 3), como o ser humano se sente com relação à perda de entes queridos.
Não preciso descrever os sentimentos daqueles cujos laços mais preciosos destroem-se por esse mal irreparável, o vazio que se apresenta à alma, e o desespero que as fisionomias revelam. Foi preciso muito tempo para que nos convencêssemos de que aquela que víamos todos os dias e cuja existência partira para sempre - que o brilho de olhos adorados se extinguira, que o som de uma voz tão familiar e querida fora silenciado e nunca mais voltaria a ser ouvido. Costumam ser essas as reflexões nos primeiros dias; mas, quando o correr do tempo comprova a realidade do infortúnio, é então que começa o real amargor do sofrimento. Quem nunca teve, porém, algum ente querido arrebatado pela mão inclemente? E por que eu haveria de descrever um pesar que todos conhecem e que não têm como evitar? Chega, enfim, o momento em que o sofrimento é antes uma indulgência que uma necessidade; e o sorriso que brinca em nossos lábios, mesmo que seja condenado como um sacrilégio, não é banido. Minha mãe estava morta, mas nós ainda tínhamos nossas obrigações a cumprir; tínhamos que prosseguir em nosso caminho com os que haviam ficado e refletir que, afinal, havíamos tido sorte, pois a nós a morte poupara.
Eis um fato que fica bem claro pelo texto: a morte vem para alguns e é obrigação dos vivos continuarem seu caminho. O trecho acima ressalta de forma clara a opinião do personagem, Victor Frankenstein, que tem em si uma certa frieza quanto aos assuntos da morte. Victor nos leva a crer que é tão fácil aprender a aceitação da mente humana para a perda assim como é fácil entender os conceitos da álgebra.
Fica bem delineado que ele assume que o sofrimento é enorme e que as pessoas tendem a crer que não conseguirão viver na ausência daqueles que muito prezaram em vida, mas continua a nos levar por todos os sentimentos que procedem a partida destes. Os corações parecem estar quebrados, mas, com o passar do tempo, acostumamo-nos com sua ausência e passamos a andar por nossa própria vida, pois não adianta parar no caminho se estamos sentindo falta daquela mão que nos acompanhava.
O trecho se encerra com uma frase intensa ("pois a nós a morte poupara."), levando-nos a pensar que estamos aqui porque nossa hora ainda não chegou. Mary Shelley guia-nos a criar uma esperança quanto a vida e uma compreensão das partidas com um tom conformista, sempre com o sentimento de que tudo deve continuar mesmo que aqueles que amamos deixem de caminhar ao nosso lado em vida.
Este sentimento de conformismo frente à morte é o que guia as linhas seguintes de Frankenstein, sendo que as perdas todas nada significam além de sofrimento momentâneo e devem ser encerradas com o passar dos dias. Pode ser cada vez mais difícil ler no decorrer do livro uma descrição da felicidade de Victor ou da família Frankenstein, mas sempre há uma descrição de redenção ou de possibilidade de uma felicidade menor.
A obra não se limita a preparar terreno apenas para a história. Outros questionamentos mais profundos são feitos, como a igualdade perante a morte. Shakespeare já havia feito isso em Hamlet da mesma forma que Mary Shelley faz com seu Prometeu Moderno.
A semelhança entre as duas obras é mais extensa do que poderíamos imaginar, e vemos estampadas também as dúvidas do ser ou não ser (comparadas mais para frente). O trecho abaixo mostra as lamúrias de Victor quanto à morte (Capítulo 21):
Por que não morri? Por que não mergulhei no esquecimento e no repouso, eu que era mais miserável do que qualquer outro homem antes de mim? A morte arrebata tantas crianças na flor da idade, que são a única esperança de seus pais idosos; quantas noivas e jovens amantes estiveram um dia no auge da saúde e da esperança, e no outro tornaram-se comida para os vermes, apodrecendo num túmulo! De que materiais eu havia sido fabricado para poder resistir dessa forma a tantos golpes que, como o girar da roda, renovavam sem cessar minha tortura?
Cabe, depois deste trecho, inserir uma das falas do Príncipe Hamlet:
Deixe-me vê-lo. (Toma o crânio.) Pobre Yorick! Conheci-o, Horácio; um sujeito de chistes inesgotáveis e de uma fantasia soberba. Carregou-me muitas vezes às costas. E agora, como me atemoriza a imaginação! Sinto engulhos. Era aqui que se encontrávamos os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Onde estão agora os chistes, as cabriolas, as canções, os rasgos de alegria que faziam explodir a mesa em gargalhadas? Não sobrou uma ao menos, parar rir da tua própria careta? Tudo descarnado! Vai agora aos aposentos da senhora e dize-lhe que embora se retoque com uma camada de um dedo de espessura, algum dia ficará deste jeito. Faze-a rir com semelhante pilhéria.
Temos diferenças bem distintas entre as duas obras no que diz respeito ao conteúdo e à história, mas elas flertam de uma maneira muito próxima com as formas que devemos encarar a morte.
Em Frankenstein vemos como Victor sofre com a partida de seus entes queridos e sentimos através da maneira como iguala todos os seres no momento da morte um desespero por justificar a sua partida. Em Hamlet, Shakespeare tenta mostrar, através de divagações de insanidade forjada pelo Príncipe da Dinamarca, uma realidade cruel quanto ao futuro de todos os corpos.
Ambos os textos mostram que o fim do ser humano é o mesmo, independentemente do cuidado com o corpo ou das provações que teve em vida.
Há uma distinção muito clara entre Victor e Hamlet: enquanto o primeiro está preocupado em entender porque todos passam pelos braços da morte e ele continua vivo, o segundo pretende descobrir se isso acontecerá com ele também; porém, caso houvesse uma substituição de trechos em ambas as obras nada se perderia no sentido da conclusão da igualdade perante a morte.
No final, concluímos que para ambos os autores, somos feitos da mesma matéria e somos iguais quando morrermos - seremos consumidos pelos vermes e nos tornaremos ossos empilhados dentro de uma cova.
Vale comparar essa passagem com o questionamento feito por Frankenstein sobre a morte, mesmo que este seja um pouco diferente no contexto. Frankenstein diz o mesmo que Hamlet: por mais que estejamos hoje de uma forma, amanhã estaremos unidos pelo mesmo fim - o da decomposição da carne!
Este aspecto, talvez, humanize mais ainda a personagem de Mary Shelley e entregue à nossa cabeça um bom argumento para nos igualarmos a outras pessoas. Tanto Hamlet como Frankenstein estão no clímax de suas dores, sem perspectivas para reduzirem seu martírio. É aí que entra a razão tentando prevalecer como bálsamo para a emoção.
Victor Frankenstein é uma personagem metódica, que luta para viver sob um regime de conduta rígido pregado por sua sociedade e por um sistema tradicional de valores pessoais herdados de sua família. Tudo isso é, em um determinado ponto de sua vida, colocado à prova por uma grande paixão - ele joga tudo o que construiu durante anos para cima e parte em busca de grandes realizações provocadas por sua maior vontade, a de descobrir coisas novas e colocá-las à prova (Capítulo 4):
O ideal seria que o homem preservasse sempre uma mente calma e tranqüila, e jamais permitisse que uma paixão ou um desejo transitório lhe perturbassem a paz. Se o estudo ao qual nos dedicamos tem a tendência de enfraquecer-nos as emoções e destruir nosso gosto pelos prazeres simples que nada pode corromper, então esse estudo é certamente inadequado à mente humana. Se tal regra tivesse sido observada, se homem algum permitisse que sua busca, fosse qual fosse, interferisse na tranqüilidade de sua vida particular, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua terra, a América teria sido descoberta mais gradualmente e os impérios do México e do Peru não teriam sido destruídos.
Através desta passagem, a autora passa como a paixão pode destruir os grandes feitos e como ela é a fraqueza da mente humana. Não é senão por causa de desejos intensos que os maiores erros foram cometidos - destrói-se muito quando queremos alcançar rapidamente um novo objetivo em nossas vidas, transformando o benefício em malefício.
A paixão move tantas personagens históricas quanto personagens da ficção a seus dramas. Hamlet é movido pela vingança cega, Romeu e Julieta são movidos por um amor intenso, César é morto por seu desejo por Cleópatra e Victor Frankenstein cria sua própria ruína.
Mover-se por impulsos do coração levam a destruição e acabam por desmoronar todos os fundamentos de uma vida regrada. Talvez, com esses valores, Mary Shelley tenha encontrado uma das fórmulas de toda a literatura e de todas as histórias humanas, que começam movidas por um primeiro desejo e criam-se através das conseqüências dos atos do coração.
Todos somos monstros pela visão de Victor Frankenstein. Se analisarmos as entrelinhas de Frankenstein veremos lago mais do que uma história de um mal físico liberto sobre uma humanidade desprotegida.
Lendo o livro com olhos de auto-crítica observamos que as características da criatura feita por Victor é não só completamente humana, mas muito ligada às ações de uma mente viva e pulsante. O "monstro" pode aprender com mais facilidade, é mais forte, mais inteligente, mais aberto a novas experiências e com uma carga emocional muito maior.
Frankenstein não cria um monstro, mas super-humaniza uma criatura, fazendo-a conviver com todos os sentimentos do ser humano de uma forma mais acentuada. Esta super-humanização faz com que questionemos a nós mesmos e se não é de nosso interior que devemos ter medo, se não é de nossa própria alma que nos escondemos temerosos embaixo de nossos cobertores.
Talvez, lendo o livro com olhos novos, você possa observar a ambigüidade do próprio Victor: ele é o símbolo da virtude, transformado por um erro cometido em um momento de delírio passional, obrigado a conviver com uma criatura que faz nascer o mal na vida perfeita de seu criador.
O que aconteceria se Victor fosse realmente o assassino? E se não existisse criatura física e ele fosse um produto de sua própria mente? Não seria Victor um caso de dupla personalidade ou de um comportamento classicamente psicopata?
Talvez sim. Os delírios de Victor são narrados por ele mesmo para um desconhecido, ganhando forma e vida somente pelas palavras de seu narrador. Pode muito bem o personagem ter enlouquecido e assassinado de forma brutal todos os seus entes queridos. Como o Dr. Jekyll, em O Médico e o Monstro, Victor Frankenstein poderia ter criado um par maligno que habitasse nele mesmo.
É sedutor pensar assim, pois a criatura deformada nada mais é do que a exteriozação de todo o mal do próprio ser humano. Dentro desta concepção todos somos monstros prontos a despertar dentro de um frenesi descontrolado; podemos destruir quem mais gostamos a partir de uma criação ilusória de dor mesclado a revolta - muitos psicopatas começaram a matar para poupar suas vítimas de um sofrimento maior ou para fazê-las sentir na pele a sua própria dor.
Se o criador e a criatura dividissem o mesmo corpo, não poderíamos nós mesmos sermos os monstros que tanto tememos? É por isso que o terror não reside na ficção ou na maneira fantástica da que um monstro é criado, mas sim na possibilidade dessa monstruosidade, malignidade e frieza serem característica de qualquer um da espécie humana.
Frankenstein é um enorme demonstrativo do sentimento conformista quanto as intempéries da vida, pois nunca há mal maior do que o que nós mesmos criamos. Toda desgraça nasce dum deslize em nossa vida e é causa futura de todos os males daqueles que nos cercam. As próprias indagações sobre o bem e o mal são cercadas da palavra destino e de que os fins justificam os meios.
Lendo o livro de ópticas existenciais descobrimos tanto sobre nós mesmos. Em um momento qualquer passamos a observar os relacionamentos entre a realização de nossos sonhos e o desprendimento de suas concretizações como produtos tangíveis; nunca sabemos se o que buscamos para nós mesmos é bom para o conjunto de pessoas que nos cerca.
Podemos usar a obra como um imenso guia de como o ser humano reage perante a sua vida e como a virtude e a pureza dos atos podem não ser somente uma característica, mas uma batalha diária entre o que queremos e o que podemos fazer.
Como entretenimento, o livro de Mary Shelley consegue cumprir seu papel, mas transcende esse objetivo e se transforma em uma obra universal que sintetiza a forma que o ser o humano reage perante os principais aspectos de sua existência: vida e morte, criação e destruição, origem e objetivo de vida - tantos faz qual desses pares escolhemos, Frankenstein mostra cada um deles como elementos de nossa própria vida.
Ler este livro é mais que entender a história, é levar cada uma das linhas para dentro de nós mesmos e compará-las com o que somos.
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